“Tenho para minha vida
A busca como medida
O encontro como chegada
E como ponto de partida”
(música Ponto de Partida de Sérgio Ricardo, 1932-2020)
Sabe aquelas coisas que você nunca acreditou que um dia poderia fazer, sem ao menos analisar as possibilidades? Conhecia várias pessoas que já tinham feito, e os relatos eram altamente estimulantes, mas eu nunca me imaginei fazendo o Caminho de Santiago de Compostela, e não me pergunte o porquê.
Tinha decidido deixar o mundo corporativo, os custos já não estavam compensando. Vinha me preparando psicologicamente e financeiramente e quando chegou o momento, já estava preparado.
Desde que me conheço por gente, sempre trabalhei com metas. Fora do mundo corporativo, tinha decidido me formar em Psicanálise, me dedicar a leituras e aperfeiçoar meu jogo de golfe.
Um novo caminho
De repente deu uma coceira e me veio a seguinte provocação: porque não comemorar os meus 60 anos em Santiago de Compostela? De início me pareceu fantasia, uma ilusão. Eu mesmo não dei muito crédito e não comentei com ninguém. Mas os meses foram passando e a ideia insistia em permanecer acesa. Timidamente compartilhei a ideia com minha esposa que me disse: por que não? E como ela é mais esperta que eu, completou: você vai caminhando e eu vou de avião e nos encontramos em Santiago de Compostela. Feito! A primeira questão estava resolvida, agora era focar na preparação.
Teria de caminhar 805 km, saindo de Saint Jean Pied de Port (França), cruzar os Pirineus e atravessar praticamente toda Espanha, justo eu que nunca fui atleta, mas, lembra que falei que sempre trabalhei com metas? Me organizei e comecei os treinos envolvendo caminhadas e um pouco de musculação. Comecei a frequentar ACACS (Associação dos Amigos e Confrades do Caminho de Santiago de Compostela) recebendo dicas e recomendações sobre o Caminho.
Grandes lições
Preocupação:
Sabe aquela história de que a beleza está na viagem e não no destino? Pois é, eu nunca pratiquei esta filosofia e de repente vi que tinha que caminhar, em média 23 km por dia durante 35 dias. Percebi que só o objetivo da chegada não seria suficiente para manter a motivação por 35 dias. Fiquei preocupado, estava na hora de encontrar outra motivação.
Mexerica:
É aqui que entra a história das mexericas. Numa das caminhadas de treino com ACACS, Elena, minha esposa, me perguntou se ali havia pé de mexerica. Olhei incrédulo, estávamos quase chegando ao destino, estava cansado e no meio de um matagal. Perguntei porquê e ela me disse que havia encontrado algumas pelo chão.
Dias depois, pensando no ocorrido, consegui simbolizar que isto era a representação de como deveria apreciar a jornada. Troquei a meta de 23 km por dia por encontrar 3 “mexericas” por dia, prestando atenção no caminho. Mas como mudanças de hábitos não são simples, me obriguei a tirar fotos das “mexericas”. Foi uma excelente troca, estava aprendendo a apreciar a jornada!
Fazendo escolhas:
No ambiente corporativo, marcado pela alta competitividade, não há como você ser senhor das suas escolhas. Elas são frutos de muitas negociações e nem sempre são as decisões mais lógicas e/ou racionais. Muitas variáveis não objetivas entram no processo e confesso que isto me frustrava bastante. No Caminho, resgatei a oportunidade de ser o senhor das minhas escolhas e responsável pelas consequências, sem ninguém a quem terceirizar os meus erros.
Resiliência:
Numa jornada longa desta magnitude você não tem controle dos eventos, principalmente de como seu corpo vai reagir a este esforço. O mais importante é manter a mente flexível e praticar mais do que nunca a tal da resiliência. Falando assim é óbvio, difícil é a prática sem perder o foco, como quando cheguei em Zuribe. Após uma caminhada extenuante, não havia um beliche disponível na cidade, isto porque o maior albergue estava fechado em reforma, e a cama disponível mais próxima estava a 16 km. Fazer o quê? Mandar tudo para aquele lugar não iria resolver meu problema. Aí que a gente vê que a teoria é bem mais fácil que a prática.
Grama do vizinho:
Soren Kierkegaard, filósofo dinamarquês, disse que “A raiz da infelicidade humana está na comparação”. No começo da jornada, quando olhava os mais jovens de porte atlético, me sentia … bom você pode imaginar. Temos tendência a acreditar que a vida é feita de somatória de corrida de 100 metros rasos, mas não é assim. Ela é uma maratona, e ao longo do caminho pude perceber que a grama do vizinho parecia mais verde, até você descobrir que ela é grama artificial. E o mais importante é que não estamos numa competição de velocidade, basta chegar no seu destino que você já é vencedor!
Lição inesperada:
Por vários dias caminhei com um senhor alemão. Educado, atencioso, mas ele tinha uma mania que começou a me incomodar. Reclamava muito, mas quase sempre ele estava certo. A questão era que ele ficava ruminando a queixa, não conseguia deixar para trás. Talvez me incomodasse tanto porque, inconscientemente, me identificava com ele. Cheguei à conclusão de que estar certo não dava direito, a ninguém, de ser chato. Era chegada a hora de mudar, não queria virar um velho chato.
Falando assim, parece que tudo foram flores ao longo do Caminho. Fiz amizade com pessoas muito legais e o espírito de solidariedade genuína pairava pelo ar. Mas também havia pessoas que não conseguiam se conectar com o espírito do Caminho e não se davam a oportunidade de experimentar uma nova dimensão da vida. Seguiam intolerantes, presos aos seus pré-conceitos. Decidi pôr em prática a frase de Shakespeare: “Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que outro morra”.
Pensador solitário:
Quando estava preparando a mochila, coloquei algumas folhas em branco e uma caneta. Tinha dúvida se a quantidade de folhas seria suficiente. Sabe aquela imagem do “intelectual” sozinho, isolado refletindo e procurando as respostas para as grandes questões da vida? Afinal eu teria tempo, não teria distrações, era o cenário ideal. Descobri que isto era uma grande fantasia. Não é à toa que os gregos clássicos buscavam as respostas através do debate.
Falar com um igual é que nem falar diante do espelho, só consolidamos o que já sabemos. Não agregamos nada de novo. Em tempo, usei somente uma folha.
Aprendizado:
A coisa que mais me surpreendeu ao longo do Caminho, foi uma conversa com Ângelo, dono de uma barraca de fruta e bebidas. Parei para descansar e ficamos conversando, foi quando ele me disse: “Você gosta de brincar, sabe, de levar a vida”. Nunca ninguém havia me dito isto e muito menos eu achava que eu sabia levar a vida. Eu era a personificação do dito: “missão dada é missão cumprida”. De onde ele tirou esta ideia?
Depois de tudo, a única certeza que tenho é que as coisas podem ser bem mais simples. Acho que eu já estava vivendo assim, e foi isto que ele percebeu em mim e, por isso, falou.
Buen Camino
No dia 3 de junho de 2019, debaixo de uma fina chuva, cheguei a Santiago de Compostela. Um pouco cansado, mas cheio de energia e disposição para encarar a vida de um outro jeito: mais leve, mais simples e cônscio de que estamos de passagem nesta grande oportunidade que é a vida.
“O encontro como ponto de chegada e como ponto de partida”. Este, para mim, é o verdadeiro espírito do Caminho de Santiago de Compostela!
Buen Camino!
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Hyung é brasileiro naturalizado, com 29 anos de atuação no mercado segurador, dos quais 25 dedicados a processos de reestruturação e turn around. Foi CEO da Generali Seguros e Zurich Seguros Gerais e atuou como VP da Mitsui Sumitomo Seguros e Mapfre do Brasil.
Economista com Mestrado e Graduação pela FEA/USP, e recentemente concluiu a formação em Psicanálise. Atualmente atua como psicanalista e orientador para desenvolvimento de carreira.
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>>> Imagem: cedida pelo próprio Hyung ✨