Fui convidada a conversar com o Comissão de Pessoas do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), compartilhando a minha história com a síndrome de Burnout, um pouco do que venho estudando nos últimos quatro anos e os relatos que ouço nos encontros do grupo de apoio “Burnoutados Anônimos”.
Participaram da conversa os membros das Comissões de Pessoas, de Saúde e de Sustentabilidade do IBGC, Andrea Destri, Armando Toledo, Carla Sauer, Flavia Issa Cevasco, Lidia Leila da Silva e Vanessa Pina:
Neste artigo, eu trago alguns insights que surgiram durante e depois do encontro, que foi de altíssimo valor tanto pra mim como para os membros do comitê presentes.
O valor de uma história
Preciso confessar que ainda estou me acostumando com o interesse que as pessoas têm na minha história com a burnout. Publiquei um livro (Minhas Páginas Matinais: Crônicas da Síndrome de Burnout) justamente com esse objetivo. Dou entrevistas e palestras falando disso e observo que os relatos das pessoas geram imenso interesse nas minhas redes sociais, mas ainda me surpreende quando me perguntam, “tá, mas como foi pra você?”, ou, “o que as pessoas te contam?”
No encontro com o comitê do IBGC foi o mesmo: eu trouxe referências e estudos dos mais diversos (todos eles mencionados ao final deste artigo), o que certamente valida a minha fala, mas existe uma reação emocional, visível, comovente que só uma história gera.
Especialmente quando falamos das organizações, a gente tende a impessoalizar e a acreditar que os dados valem mais do que qualquer coisa – mas no fim das contas, é sempre sobre pessoas, e as pessoas se movem, mesmo, é com histórias.
Como as “Burnout shops” viraram o normal do mundo corporativo
Fonte: 2021 Global Workplace Burnout Study
Quando relatei a minha experiência com dois burnouts – o primeiro sendo diretora de atendimento de uma empresa gaúcha, e o segundo sendo gestora de projetos em uma empresa na Holanda, mencionei um conceito apresentado em uma palestra da pesquisadora Christina Maslach, a maior referência viva em burnout no mundo.
A dra. Maslach, que estuda burnout há mais de 30 anos, vive na California (EUA) e testemunhou de perto, o boom das startups de tecnologia no Vale do Silício.
Ela conta do surgimento das burnout shops: um tipo de operação quase de guerra para fundar uma startup, trabalhar em um ritmo insano por alguns anos e depois vender a empresa por alguns milhões de dólares e, quem sabe, conquistar uma aposentadoria antecipada. Os empresários colocavam anúncios deixando claro que a operação era uma burnout shop, como dizendo: você vai trabalhar sem parar por um período, mas ao final de uns 2 ou 3 anos, você vai sair com uma grana no bolso.
As burnout shops proliferaram no Vale – mas o que passou a acontecer foi que as startups eram compradas e o ritmo de trabalho não diminuía. Pouco a pouco, o ritmo insano que era pra ter data de validade passou a ser o normal.
Esse normal rompeu as fronteiras do Vale do Silício, chegando no Brasil, por exemplo, através de fusões e aquisições de empresas brasileiras com multinacionais norte-americanas.
O resultado está aí: um terço da força de trabalho brasileira já sofria com sintomas de burnout antes da pandemia (ISMA-BR).
O trauma que nos expele das Organizações
Ao falar da minha experiência com a síndrome de burnout e suas consequências na minha vida pessoal e profissional (desemprego, depressão, estresse pós-traumático, vulnerabilidade financeira, ansiedade generalizada e crises de pânico, pra mencionar algumas), eu comento um aspecto marcante na minha história e na de tantos outros “burnoutados“: o trauma.
Burnout e trauma se entrecruzam, no sentido de que, muitas vezes, uma experiência traumática pode ser um dos muitos gatilhos para um episódio de esgotamento e, ao mesmo tempo, o próprio burnout é uma vivência traumática por si só.
Comentei que, durante boa parte dos últimos seis anos, eu mal podia cogitar pisar em uma empresa novamente. Que muitas pessoas que passam por isso criam aversão a empresas, aversão a indústrias inteiras, aversão ao tal “mundo corporativo”. Eu mesma, nos meus primeiros escritos em 2018, me descrevia como alguém que havia abandonado a corrida do mundo corporativo.
Os abusos e as injustiças foram tantos que eu realmente não achei que jamais pudesse voltar a sequer dialogar com uma entidade que consistisse de equipes, escritórios, diretores e planejamentos estratégicos. O meu próprio negócio ainda sofre com isso: tenho dificuldade em cobrar por serviços, já neguei oportunidades por puro medo.
Hoje eu me reaproximo desse mundo e vejo que eu e ele estamos um pouco diferentes – eu, certamente, bem mais. Me vejo, ainda que raramente, em reuniões, e observo que estou muito mais de acordo com meus próprios termos e entregando algo no qual enxergo valor. E vejo que é fundamental que as nossas vozes sejam ouvidas nesses espaços, honrando também quem não tem forças para fazer o mesmo.
Bem-estar não é a resposta
Uma das respostas mais frequentes que observamos ao aumento dos casos de afastamento por questões de saúde mental em geral, em especial o burnout, é a disseminação das práticas de autocuidado. Meditação, atividade física, vale-terapia e ferramentas de gestão do tempo, entre tantas outras iniciativas, vem ganhando cada vez mais espaço – e investimento.
Apesar de o autocuidado ser, sim, um pilar importante da prevenção e da reabilitação da síndrome de burnout, ele não pode, de forma alguma, ser o único. Isso porque o autocuidado está na dimensão do indivíduo – e o burnout é um problema do sistema (como já veremos).
A solução precisa ser sistêmica
Essa frase da Vanessa Pina, conselheira organizacional que foi meu primeiro contato no IBGC e me abriu as portas do Instituto, é verdadeira e encontra comprovação na literatura sobre burnout. Em um estudo de 2016, a Mayo Clinic consolidou as áreas estratégicas da relação com o trabalho com os atores que impactam a saúde de seus profissionais. São os atores:
Os esforços para enfrentar esse desafio devem primeiro reconhecer que o burnout é, em grande parte, um problema do sistema. Esforços sinceros para aliviar o problema devem abordar os fatores de burnout, incluindo cargas de trabalho excessivas, ineficiências no ambiente, perda de flexibilidade e controle sobre o trabalho, barreiras à integração saudável entre vida profissional e pessoal e a erosão do significado no trabalho. Fatores individuais, da unidade de trabalho, da organização e nacionais também contribuem para cada uma dessas dimensões. Vários estudos importantes forneceram insights a esse respeito.
Assim como o burnout não é um problema individual, ele tampouco é “apenas” uma questão de cansaço físico ou mental. Em seu livro de 2000, a pesquisadora Christina Maslach listou seis áreas estratégicas para a relação com o trabalho, sendo elas:
- recompensa
- justiça
- comunidade
- sentido
- autonomia e
- carga de trabalho.
As áreas estratégicas que predizem engajamento ou burnout
Em anos de estudos nos EUA e no mundo, a dra Maslach encontrou uma correlação entre essas áreas e o engajamento ou esgotamento da equipe. Ainda, ela comprovou que é possível prever, de acordo com o nível de compatibilidade dessas áreas com cada colaborador, em cada área da organização, se a equipe está engajada ou em risco de burnout.
Combinando a pesquisa da professora Maslach com as inferências iniciais do psicanalista Herbert Freudenberger, que desenvolveu o conceito clínico de burnout nos anos 70, com as minhas duas experiências de esgotamento e os relatos do grupo de apoio, eu ouso propor a inclusão de duas áreas igualmente estratégicas ao composto: identidade e descanso & desconexão.
Adaptado de: Banishing Burnout: Six Strategies for Improving Your Relationship with Work Christina Maslach e Michael P. Leiter, 2005
Cada área estratégica tem seus sub-itens, e aqui você encontra um questionário de autoavaliação da relação com o trabalho partindo desses itens. Partindo deste framework, o papel da gestão direta e indireta se torna identificar quais os pontos de maior incompatibilidade entre as práticas atuais e as demandas das equipes e endereçá-las de forma estratégica.
Um exemplo dado pela própria dra. Maslach: uma equipe de uma das organizações consultadas por ela apresentou uma pontuação altíssima de incompatibilidade no quesito recompensa. Ao investigar este ponto, entendeu-se que a organização oferecia uma premiação que parecia ser uma excelente ideia para reconhecer talentos. No entanto, as equipes não tinham clareza das regras da premiação e tudo parecia uma grande politicagem. A iniciativa foi substituída por outras estratégias de recompensa, mais transparentes e compatíveis com as expectativas das equipes, e após um ano o score de recompensa melhorou sensivelmente.
No fim, uma palavra resume tudo: Segurança
Obviamente, há muito, muito a se falar sobre burnout. E é justamente a sua natureza multifacetada, multifatorial e interdisciplinar que mais me causa fascínio.
Existem fatores individuais, psíquicos, fisiológicos, organizacionais, culturais, econômicos, políticos, judiciais e sociais em jogo quando falamos da síndrome de Burnout. Ela é um espelho da nossa sociedade, das nossas relações interpessoais, da forma como nos relacionamos com o trabalho, das nossas prioridades individuais e coletivas e da nossa bússola ética.
Um ponto que eu deixei de mencionar durante o encontro do IBGC, mas que sinto que não pode faltar nesta discussão, é a ideia de segurança.
Quando nos sentimos seguros em um emprego, sem medo de sermos demitidos, sem medo de sermos julgados, sem medo de sermos nós mesmos, nós conseguimos acessar um nível muito mais completo da nossa cognição. Quando nos sentimos seguros, somos mais criativos, somos mais organizados, somos mais lógicos.
Um dos meus muitos trabalhos internos dos últimos sete anos vem sendo cultivar um senso interno de segurança. As práticas de autocuidado ajudam nisso, pois estimulam a área do nosso sistema nervoso responsável por nos acalmar, e que age em contraposição à área responsável por nos colocar em alerta – e em estresse. Quando meditamos, quando estamos em meio à natureza, nos sentimos tranquilos e isso faz bem pra saúde.
Existe um desafio inevitável de cultivar um senso de segurança dentro das organizações. Entender que já superamos o modelo de gestão pelo comando e controle e estamos, sim, nos movendo na direção de lideranças mais compassivas. A ex-executiva e atual consultora de Desenvolvimento Humano Ligia Costa publicou um livro sobre o tema, chamado Líder humano gera resultados: Como ser um líder que transcende o eu e faz a equipe e a empresa crescerem.
O tema segurança psicológica vem sendo cada vez mais trazido nos ambientes de trabalho, o que é algo que pode contribuir sensivelmente para o bem-estar das pessoas nas organizações.
Acredito que estamos aprendendo, individual e coletivamente, que não precisamos mais fazer de conta de que temos todas as respostas. Algo muito mais legal surge quando podemos ser nós mesmos, com nossas potências e limitações. E eu espero que seja só uma questão de tempo até que os índices de esgotamento sejam drasticamente reduzidos e, especialmente, que quem passa por isso seja devidamente amparado, devidamente acolhido e devidamente recompensado por toda a riqueza que já gerou para seu empregador.
Concluindo
A síndrome de Burnout é um tema complexo: receitas de bolo e simplificações não contribuem para o debate. É preciso superarmos a dicotomia presente entre a individualização e o que muitos chamam de “vitimização”: burnout não é um problema apenas do indivíduo, tampouco 100% da responsabilidade recai sobre as organizações. A síndrome é um fenômeno sistêmico e que demanda ações nos planos individuais, coletivos, sociais e judiciais.
Quem adoece tem pela frente um trabalho interno inevitável, de reconhecer seus limites, de identificar gatilhos e ressignificar sua relação com o trabalho e consigo mesmo. As Organizações tem a responsabilidade de prevenir os riscos psíquicos e físicos e de amparar da melhor forma possível quem está em risco ou já colapsou, fazendo, também, seu trabalho interno de rever sua cultura e suas práticas de gestão.
O amparo precisa ser emocional e financeiro: a vulnerabilidade financeira de quem passa por um burnout e é demitido logo em seguida ou tem seus direitos negados é um problema sério, que só atrapalha a recuperação e coloca, muitas vezes a vidas pessoas em risco.
Foi terapêutico estar diante daquele comitê . Eu, que passei mais de cinco anos completamente descrente das organizações e do mundo corporativo como um todo. O que vi nesse encontro foi que, sim, existem práticas abusivas, e que, sim, estamos diante de um claro limite dos nossos sistemas econômicos, sociais e da forma como enxergamos o trabalho. Mesmo com isso tudo, existem pessoas em que vale a pena acreditar.
Pessoas que estão dispostas a fazer diferente, dispostas a fazer valer suas vozes, dispostas a aprender e a ensinar. Indivíduos que sabem da importância do cuidado nas Organizações, tanto por sua própria ética como por entendimento de que ambientes psicologicamente seguros apresentam uma vantagem competitiva e que o lucro não pode mais ser a única medida de sucesso.
E é por essas pessoas e para essas pessoas que eu me dedico, e me coloco à disposição para colaborar e para ajudar a construir um futuro do trabalho mais saudável, mais justo e mais ético.
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Carol Milters é escritora e investigadora da Saúde Mental no Trabalho | Síndrome de Burnout & Workaholismo. Idealizadora da 1ª Semana Mundial de Conscientização da Burnout e do grupo de apoio online Burnoutados Anônimos.
Autora do livro “Minhas Páginas Matinais: Crônicas da Síndrome de Burnout”
>> Recomendação: Saiba mais sobre essas áreas estratégicas na Aula aberta: Como a geração Burnout vai reinventar a relação com o trabalho
>> Artigo Depoimento: No fundo do poço pode haver um trampolim
>> Complemente seu conhecimento: Uma Travessia pelo Desenvolvimento Emocional
* Este artigo foi publicado originalmente AQUI, onde há muitas recomendações de conteúdo sobre o tema Burnout.
Agradecimento pela imagem: Gerd Altmann✨